Jussara Lucena, escritora

Textos

Eu, tela

Será que eu toco a tela novamente? Meu mundo se transformou da última vez que o fiz. Me sinto diferente, meio máquina, um pouco energia, muito nada. De que matéria sou feito?

Talvez eu deva voltar ao escritório onde fui fazer a entrevista de emprego. O e-mail, agora tenho certeza, havia sido dirigido para mim, mesmo citando que várias pessoas passariam pela entrevista e fariam o teste de aptidão.

Realmente havia um grande número de pessoas na antessala, mas foi estranho que a saída tenha sido feita por aquele escuro corredor, não reencontrei nenhuma das pessoas da antessala.

Estranhei que uma empresa de tecnologia pudesse utilizar um meio tão arcaico para uma aproximação com os candidatos. Os demais concorrentes faziam piada ao usar a caneta esferográfica de tubo transparente para responder as questões da ficha que preenchemos manualmente.

Um a um entramos na sala seguinte. O sujeito da entrevista limitou-se a repetir as perguntas do papel. Ao final, me indagou se eu aceitaria efetuar um teste de glicemia, mostrou-me as agulhas descartáveis e analisador. Apesar de estranho, o teste era simples, não oferecia perigo. Era como os testes que minha mãe fazia todos os dias para controlar o diabetes. Concordei, precisava de um trabalho.

No ambiente apenas uma cadeira giratória, posicionada em frente a uma parede branca. Aos poucos a luz do ambiente foi sendo reduzida, até a escuridão total. Percebi que a parede em frente ao local onde eu havia sentado começou a deslocar-se. Em minha frente surgiu uma mesa e sobre a mesa uma tela. Não havia teclados ou qualquer outro periférico.

A tela não possuía moldura, parecia flutuar na escuridão da sala. A luz concentrava-se apenas nela, não irradiava para o ambiente, porém era perceptível aos meus sentidos, que estavam mais aguçados do que nuca.

Pensei em toca-la. Apenas com a aproximação de um dedo meu ela ativou-se e depois da splash screen, a máquina começou a conversar comigo. Mas eu não percebia a emissão de ondas sonoras que pudessem ser captadas pelos meus ouvidos. É como se eu recebesse as informações diretamente no meu cérebro. A fala se repetia nas legendas e inscrições da tela. Imagens também eram emitidas e os sons e músicas pareciam perfeitos, harmônicos, sincronizados com cada informação que eu recebia e cada sentimento em mim despertado.

Comecei a conversar com a máquina. Ela registrava não somente minhas palavras, meus pensamentos também. Alguns deles inconscientes e que me surpreendiam quando surgiam. Tudo acontecia muito rápido.

Depois de algum tempo, parecíamos um só. Fui transportado para um mundo particular, fruto de todos os meus desejos, de minhas carências. Um sonho, muito colorido, muito vivo, real. Era como se eu estivesse na janela de casa a observar o mundo, uma vista privilegiada, só que tudo que eu imaginava, acontecia, a não ser por alguns pensamentos, algumas vontades censuradas pela força que controlava a máquina.

Só havia uma regra: não acessar as telas sinalizadas por bandeiras de advertência com a inscrição “medo”. Fiquei muito curioso com aqueles locais. Me peguei por diversas vezes pensando em acessá-los. Mas havia muita coisa nova e muita coisa antiga que eu precisava visitar e revisitar.

Meu novo mundo dependia da minha vontade, da minha ambição. Mas será que tudo isso não teria algum preço. Sempre ouvi dizer que não havia almoço grátis. A cobrança sempre viria. Porém, a felicidade que me era proporcionada parecia valer qualquer preço.

Em alguns momentos cheguei a pensar que aquela picada no dedo poderia ter sido a entrada para algum tipo de droga, que agora me fazia delirar. A sensação era boa. Resolvi não questionar, apenas aproveitar cada um daqueles instantes.
Pensei em todo o trabalho de um pintor para numa única tela inanimada, transmitir vida, sentimento. Lembrei também das páginas e páginas produzidas pelo escritor para traduzir, imprimir no papel ou no meio digital a sua tela, o seu modo de enxergar o mundo. Já para mim, bastava imaginar e tudo se tornava realidade.

Alguns minutos depois tudo cessou. Me percebi novamente sentado em frente à máquina. Atendi ao comando dela que pedia que eu saísse pela abertura da sala que estava iluminada naquele momento. Fez uma última recomendação: que eu não voltasse ao escritório, nem procurasse informações sobre a organização em sítios da Internet, sob pena da localização do meu endereço IP e a consequente eliminação do processo de seleção.

Saí sem entender muito bem tudo o que acontecera. Segundo o sistema, em pouco tempo eu receberia uma máquina similar àquela em minha residência.

Não sei exatamente como consegui encontrar o caminho de casa naquela noite. Caminhei pouco e saí tão distante daquele prédio.

Os dias seguintes foram muito difíceis. Eu gostaria de experimentar tudo aquilo novamente. Não recebi qualquer comunicado da empresa e a vontade de voltar lá era grande.

Minha vida perdera a graça, havia um mundo muito mais interessante, mais excitante quando eu me unia àquela tela. Não saí para o trabalho, faltei ao curso na faculdade.

Esvaziei a geladeira, não tive ânimo para ir ao supermercado. As cortinas do apartamento permaneciam fechadas. Não abri as portas para a diarista que cuidaria da casa.

Numa tarde, a campainha pareceu soar diferente, me esforcei para levantar do sofá. Meus músculos doíam, minha boca estava seca. Arrastei-me até a porta e girei a chave na fechadura. Antes de abrir a porta por completo, espiei pelo olho mágico, ninguém, apenas um cartaz pendurado na parede com o que parecia a logomarca da empresa da entrevista.

A adrenalina foi a mil e consegui forças para apanhar a caixa. Ao lado dela, um pacote com alguns sanduíches e um litro de refrigerante. Quem enviou a encomenda parecia prever a minha situação.

Corri para abrir a caixa, porém afixado na abertura dela havia um aviso: “Antes de configurar sua nova aventura, cuide da sua higiene, alimente-se. Vai precisar. Dê um jeito na casa também. A máquina bloqueia diante do mal cheiro”. Eu não percebia, mas pelo meu aspecto no espelho eu deveria estar cheirando muito mal mesmo!

Pouco tempo depois, eu estava em frente a ela. Apertei o botão e a tela se iluminou. Quando sistema se iniciou, foi como se eu me reconectasse com a máquina, como eu fosse a própria tela.

Me sinto diferente, meio máquina, um pouco energia, muito nada. De que matéria sou feito?
A voz, nada metálica, me perguntou: “o que você quer ser agora?”.

Numa decisão impensada, mergulhei num novo mundo. Algo que parecia estar guardado, escondido no mais profundo espaço de meu inconsciente. Eu gostava do que via, adorava o que sentia. Era uma mistura de cenas passadas, de lugares já vistos, outros totalmente estranhos. Antigo e moderno dividindo o mesmo espaço. Os cristais e luzes incluíam visões futuristas que se transformavam com leves toques em telas espalhadas no caminho.

Me sentia um avatar às avessas, pois eu me achava um ser humano, a carne que se transformou num ser espiritual, quem sabe superior, pois eu podia criar o meu mundo, ser o criador.

Outros seres começaram a habitar o mundo que até então era só meu. Amigos, uma companheira. Tudo perfeito! Um mundo com trilha sonora, com aromas e sabores marcantes.
Eu perdi a noção do tempo. Tudo me parecia tão familiar que eu suponha ter passado toda a minha existência lá, neste meu mundo que me parecia particular.

Descobri que somente eu conseguia enxergar as telas de “medo” espalhadas naquele universo.
O tempo passava e eu nunca me senti desafiado. Obter tudo o que eu queria passou a tornar-se monótono, sem graça.

Pensei em voltar para a minha antiga vida. Não sabia como. Tentei por várias vezes falar com o sistema. Não obtive resposta. Me tranquei num quarto escuro para poder pensar melhor. No canto superior esquerdo havia uma tela de “medo”. Talvez escolhê-la fosse a única forma de mudar a minha atual realidade. Foi o que fiz.

Fui transferido para um local inóspito onde as pessoas se amontoavam pela rua e brigavam por qualquer resto de comida. O cheiro fétido se espalhava por todos os cantos. A multidão percebeu que eu carregava algo nos bolsos. Alguém gritou: “comida” e todos vieram de encontro a mim. Corri o mais que pude até chegar ao muro que cercava o lugar. Não havia como transpô-lo.

Perdi minhas roupas, fui pisoteado e jogado num córrego de esgoto. A água podre enchia meus pulmões. Fechei meus olhos. Surgiram em minha frente duas novas telas: uma de “morte” e outra de “dor”. Não tive dúvidas, escolhia a de dor.

Sem minhas roupas, fui lançado num mundo gelado e deserto. Além do frio, a sede e a fome minavam ainda mais minhas energias. Meu corpo congelava. Surgiram novas telas: “morte” e “dor”. Eu não suportava mais dor, escolhi a morte.

Veio a escuridão. Acordei com um sujeito a minha frente. Ele estendeu a mão em minha direção. Iniciei o sistema e comecei a captar as informações e pensamentos dele. Neste jogo de criador e criatura, tornei-me mais uma das telas manipuladas pela força que até agora desconheço. Ou será que eu sempre fui tela e sonhava transformar-me num dos seres que a observam?


Texto premiado com o 2º lugar no concurso do I Encontro Telaas, promovido pelo Núcleo de pesquisas e realizações TELAA da UnB.

Adnelson Campos
26/12/2016

 

 

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